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Recordações da Páscoa

 

Longos séculos de piedade centrada na paixão de Cristo geraram, na prática religiosa e na consciêcia dos fiéis, deturpações ao Evangelho que, ainda hoje resistem à mudança da teologia pastoral consagrada no Concílio do Vaticano II.

Alguns dos intérpretes dessa piedade quaresmal que perpassava pelos vários tempos litúrgicos, nomeadamente no período Pascal, foram os frades franciscanos. Deles ainda restam, no interior de algumas igrejas, sinais visíveis das tradicionais "missões" cujos pregadores apelavam à contrição dos fiéis, diabolizando o que era humano e terreno, e sobrevalorizando o céu, o eterno e a vida para além da morta.

Não admira, pois, que a Quaresma e sobretudo a Semana Santa fossem tempos penosos de jejum e penitência para enfrentar-se os malefícios do "mundo, do demónio e da carne".

A própria sociedade alicerçada nos ditames cristãos, coibia-se de promover qualquer iniciativa de distração ou diversão que perturbasse o recolhimento e a piedade que os fiéis docilmente seguiam era proporcionada pela escuridão dos templos e pelo ambiente social de recolhimento.

Os jejuns e abstinências eram respeitados à risca e quem o não fizesse considerava esssa falta ato pecaminoso de confissão obrigatória que as indulgências não perdoavam.

Era neste ambiente quase dolente e compungido que os fiéis celebravam a morte de Jesus, mais que a sua ressurreição.

Adolescentes e jovens ainda, passávamos metade das férias da Páscoa num silêncio piedoso, fechados entre as quatro paredes do Seminário e os cerimoniais da Sé Catedral.

De permeio, a penitência era interrompida por uma laranja doce do Pico, ou uma amendoa que nos chegavam em caixotes transportados pelos barcos, quando havia portador certo.

Angra, a cidade dos Bispos e dos Capitães-Generais, tomava outra feição durante a Semana Santa e as nossas saídas do velho palácio do conde, tinham como destino único a Sé, onde decorria todo o cerimonial da paixão e a procissão da sexta-feira santa, que marcava ainda o predomínio da cristandade sobre uma sociedade a caminho da secularização.

Recordo que um ano, a procissão do enterro do Senhor, ao passar pela Rua de Lisboa, em frente ao Café Chá da Barrosa, foi surpreendida por uma grande algazarra de jogadores de dominó o que admirou os fiéis. O facto foi de seguida aproveitada pelo pregador do sermão do enterro, que o comparou  ao episódio bíblico do sorteio do manto de Jesus pelos soldados, indiferentes aos últimos momentos do crucificado.

Na velha Sé, os membros do clero mais destacados: cónegos, monsenhores e padres beneficiados, apresentavam-se, a preceito, com trajes talares, servindo o Bispo como um alto dignitário. Este, por sua vez, vestia-se do Tesouro da Sé, com antigos e ricos paramentos bordados a ouro, transmitindo à celebração litúrgica da quinta-feira santa e da vigília Pascal toda a sumptuosidade dos grandes e solenes momentos.

Na celebração da Morte do Senhor, porém,  os dignitários despiam a sua reverendíssima importância, quando descalçavam os sapatos de verniz e fivela e se prostravam para a adoração da Cruz.    

Numa dessas ocasiões um seminarista que acolitava o mestre de cerimónias, tomou os sapatos do Bispo e, em tom de graça, exclamou em surdina: “cheiram a chulé!...”
D. Manuel ouviu o desabafo, achou graça, e desatou a rir, abertamente e, até ao final da cerimónia, de quando em vez, lá voltava o fum-fum-fum-fum. Toda a gente reparou sem, no entanto, perceber o que se passara.

No final da cerimónia e já na sacristia dos cónegos o prelado pediu desculpas, mas recomendou ao Reitor do Seminário: “Compre 5 quilos de amêndoas e entregue-as ao seminarista Pereira Garcia, com os meus votos de Boas Festas.”

O rapaz esqueceu o episódio e ficou enrascado quando foi chamado à reitoria. Perante a “lembrança” episcopal, o seminarista não queria acreditar que o seu desabafo, dita num momento sério, pudesse ter originado tão deliciosa oferta pascal – comentava anos mais tarde.

Não fossem os folares e algumas amêndoas enviadas de casa para adoçicar a distância da família, e a quadra Pascal seria um amargo tempo de jejum e de abstinência semelhante aos mais antigos e penosos sacrifícios conventuais.

E tudo porque só há poucas décadas é que se reafirmou a Ressurreição como o momento chave da História da Salvação.

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